Contos de Eça de Quierós - A aia

A aia
Resumo e análise da obra





Era uma vez, um rei, moço, formoso e valente que saiu para a batalha deixando solitária e triste a sua rainha e seu filhinho que vivia em seu berço. O rei não retornou da batalha, a rainha chorou magnificamente o rei, o seu esposo e sobretudo o pai que deixara seu filho desamparado no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.
Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem mau e ambicioso; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com o seu guizo de ouro fechado na mão!

Morava também no castelo, um outro bebezinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos nasceram na mesma noite de verão e dividiam o mesmo seio, a mesma atenção. A rainha, antes de adormecer, ia beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo.
Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei. Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores, acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades.






A lealdade da aia era intensa, ela temia pelo seu principezinho, algumas vezes, com ele pendurado em seu peito, pensava na fragilidade da criança e lembrava da maldade de seu tio cruel , de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono. Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chamando ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz.
De repente, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que ficava em cima nas serras, descera à planície e por onde passava deixava tudo em ruinas. E a rainha desventurosa quando soube, apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva.

Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo a aia a adormecer, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada do palácio. Escutou ansiosamente; entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes, houve um gemido, corpos tombando. Ela avista de longe um clarão de lanternas e brilho de armas. Num relance, tudo compreende.
Então, rapidamente, sem uma vacilação ou dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente, um homem enorme envolto num manto negro surgiu à porta. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de ouro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.
A ama ficara imóvel no silêncio e na treva. Rumores e tochas flamejantes despertaram todo o palácio, a rainha acordou assustada, gritando pelo seu filho, ao avistar o berço de marfim com as roupas desmanchadas, vazio, caiu em choro intenso, despedaçada.

Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.
Novos clamores invadiram o palácio, o capitão de súbito, noticiava: o bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ah dor sem nome! O corpinho tenro do príncipe lá ficara também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!

Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lhe mostrar, o príncipe que despertara. Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?...
Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria estática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração...

A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos tesouros. Todos estavam ansiosos a espera da escolha que faria aquela aia. De repente, abriram-se os ferrões e a Sala dos Tesouros Reais reluzia...
Mas como recompensa-lá? Quanto ouro pode pagar um filho? Então, com a ajuda de um velho nobre decidiram levar escrava a Sala do Tesouro Real, para que escolhesse entre as riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que desejasse...

E, acendeu-se um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a sala, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas...
Um longo aahhh!!! E suspiros foram ouvidos. Depois um imenso e ansioso silêncio. E no meio da sala, envolta na refulgência preciosa, a aia não se movia... Apenas os seus olhos brilhantes tinham se erguido para o céu. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto e procurava o seu peito.

E então ela sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta. Que joia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis ia ela escolher?
A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando par; o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:



— Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu filho! E cravou o punhal no coração.


                                                                   FIM
A aia

A protagonista: a Aia Personagem Redonda A Aia é a protagonista deste conto e pode ser caracterizada física e psicologicamente: era ―bela e robusta‖; era carinhosa com as crianças;
Classificação das personagens: protagonista: a Aia; personagens secundárias: o Rei, as crianças, a Rainha, o irmão bastardo do rei, o capitão das guardas, o velho nobre que sugere a recompensa, … figurantes: senhores, aias, homens de armas que seguiam a Aia e a rainha até à Sala do Tesouro, o servo que abre as janelas, …
 era fiel ao Rei, à Rainha e ao príncipe, daí ter chorado pela morte do rei; era feliz (não se importava de ser escrava, porque era mais livre do que se fosse rica); considerava a morte como uma continuidade da vida no Céu;
era segura, forte, corajosa e protetora. era rápida na reação, inteligente, dotada de uma grande intuição e de uma sensibilidade profunda (quando vê o perigo reage imediatamente)
 após a morte do filho, a Aia ―morre‖ psicologicamente. Por causa da dor profunda pela morte do filho, ela fica ―muda e hirta‖, a sua face tem a rigidez e a palidez da morte (―face de mármore‖), e o seu andar é também um ―andar de morte‖, como se estivesse num sonho mau. Por todas estas razões, a Aia suicida-se, pois acreditava que o seu filho estava à sua espera e precisava dela: – Salvei o meu príncipe – e agora vou dar de mamar ao meu filho!
A personagem secundária: o Rei
Personagem tipo O Rei, como personagem deste conto, pode ser caracterizado física, psicológica e socialmente: fisicamente era moço, valente e formoso;
 psicologicamente era corajoso, sonhador, ambicioso (desejava ter mais territórios, mais fama e mais riquezas), alegre mas pouco sensato, pois partiu para a guerra, levando os melhores soldados, deixando a rainha e o filho bebê à mercê dos usurpadores do trono; socialmente era muito rico, pois possuía vastas ―cidades e searas‖
A personagem secundária: a Rainha
Personagem tipo e redonda A Rainha pode, igualmente, ser caracterizada psicologicamente: amava o Rei. Sentiu profundamente a morte do Rei (pois temia pelo futuro do Reino), a morte do esposo (chorou pelo seu próprio futuro, agora que estava viúva), a morte do pai (pois receava pelo futuro do filho);
 temia os inúmeros inimigos do filho; sentia igual carinho pelo filho da Aia, apesar de ser apenas um ―escravozinho‖; mostrava uma grande fraqueza, no que diz respeito à defesa do Reino e do herdeiro do trono; face aos acontecimentos trágicos, a rainha apenas sabia correr a cada instante até ao berço do filho, desventurosa, infeliz, receosa; quando descobriu que o filho sobrevivera, ficou extremamente feliz e abraçou e beijou a Aia, chamando-a ―irmã do seu coração‖.
As personagens secundárias: as crianças O principezinho e o escravozinho têm diversas diferenças que os distinguem:
O principezinho
- cabelo louro e fino; - fragilidade; - espera-o uma longa infância antes que ele fosse sequer do ―tamanho de uma espada‖. Estava, por isso, sujeito a muitos perigos; - estava num berço magnífico de marfim, entre brocados; - sofria constante perigo de vida; - o seu futuro seria cheio de preocupações e de responsabilidades.
O escravozinho - cabelo negro e crespo; - ―corpinho gordo‖; - socialmente, era um escravozinho; - estava num berço pobre de verga, coberta apenas por um pano de linho; - porque era pobre, não tinha que recear pela vida. Teria uma existência simples e alma livre
A personagem secundário: o irmão bastardo do Rei Esta personagem podem ser caracterizada em dois aspectos: fisicamente: era enorme, tinha a face flamejante e mais escura do que a noite; psicologicamente: era mau e cruel, tinha o coração mais escuro do que a face, possuía uma ambição desmedida (cobiça grosseira, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, faminto de trono) e era um assassino e um traidor (deixou ―rasto de matança e ruínas‖. É identificado com o lobo (que remete para a sua selvajaria, para a traição e para o desejo de se vingar) e com uma ave ―de rapina‖ (que está associada ao roubo, à violência, à morte das crias dos outros animais). Era um marginal, vivia ―num castelo sobre os montes‖, com um bando de rebeldes.
O Espaço A ação é localizada num reino grande e rico, e decorre num palácio, erguido num reino próspero, abundante em cidades e searas. Toda ação decorre nesse espaço, sendo que alguns recantos são sobrevalorizados, por exemplo, espaço interior, o quarto onde o príncipe e o filho da escrava dormiam e a Sala dos Tesouros Reais.
No entanto, alguns espaços exteriores mostra alguma importância:
o primeiro é o espaço onde se efetiva a derrota do rei e consequente morte que vai deixar a rainha viúva, o filho órfão e o povo sem rei;
 o segundo acaba por ser um elemento caracterizador do vilão do conto: vivia num castelo, à maneira de um lobo, que entre a sua alcateia, espera a presa.
O tempo Existe uma indefinição temporal, confirmada pela fórmula como se inicia o conto ―Era uma vez…‖. No entanto, é possível situar a ação num determinado tempo histórico: monarquia; época de conquistas de territórios e de batalhas; tempo de escravatura.
O narrador
Quanto à presença, o narrador é não participante ou
heterodiegético, uma vez que narra os acontecimentos na 3ªpessoa. Quanto à posição, o narrador é subjetivo, na medida que deixa
transparecer a sua perspectiva em relação às personagens e aos
acontecimentos (―Ai! A presa agora era aquela criancinha (…)‖,
―leal escrava‖).
Símbolos Ao longo da ação há inúmeras referências ao ouro, material precioso e incorruptível, símbolo de perfeição. Para além do seu valor material, simboliza a salvação, a elevação de uma forma superior de vida, mais espiritual. O príncipe, frágil e inocente, tem cabelos louros e dormia no seu berço de marfim com o seu guizo de ouro fechado na mão. Por outro lado, a presença da escuridão, da noite ao longo da ação, acentua o caráter trágico da mesma. Os cabelos negros do escravo, em contraste com os cabelos louros do príncipe são referências à morte do primeiro versus a salvação do segundo. O punhal, travejado de esmeraldas, configura-se como um pormenor importantíssimo, uma vez que pode fazer emergir os significados de justiça, dignidade e extremo amor de mãe.
É o coração que faz o caráter.

Eça de Queiroz

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